PM Douglas Jesus de Oliveira, que transmitiu ao vivo a própria morte na internet. Foto: Facebook

Policial que se matou foi antes assassinado pelo Estado

RIO DE JANEIRO – Douglas de Jesus vieira. PM. Jovem. Bonito. 28 anos. Morreu ao vivo pelo Facebook.

Morte ao vivo parece jogo de palavras, né? Mas entendo essa morte como um pedido de ajuda. De companhia , num momento de decisão tão solitária.

PM Douglas Jesus de Oliveira, que transmitiu ao vivo a própria morte na internet. Foto: Facebook

PM Douglas Jesus de Oliveira, que transmitiu ao vivo a própria morte na internet. Foto: Facebook

Temos fios. Linhas sutis, frágeis, invisíveis que nos ligam à vida.

Umas pelos sonhos. Outras pelos desejos. Linhas que a gente cultiva interna e externamente. Planos e rotas. Laços que firmamos com a vida. E que nos mantém em pé

A depressão adoece os afetos e os fios. Eles perdem a tensão. Ficam mais frouxos, largados. A gente perde o exato contorno. Murcha. Desbota . Perde o brilho e o tesão de viver.

Tem dias inteiros que você só afunda. Quem está por perto nota. Só não sabe a exata profundidade do estrago.

A depressão é traiçoeira. Confundida com preguiça, ingratidão, chatice. Até falta de Deus no coração.

Chega mansa. Sem alarde. Se enrosca. Te cobre como sombra escura. E te retorce por dentro. Sugando até as tripas. Cobra safada.

Você vive um vazio. O vácuo de afetos. Só a tristeza reina absoluta em seu reino de solidão e tortura. Nada mais tem gosto, graça ou grande importância.

Acontece da pessoa pedir ajuda? Acontece dela ameaçar se matar? Acontece. A gente fica achando que é força de expressão. Não é.

Ao contrário! É a expressão da força de quem se vê quase abduzido dentro de si mesmo. E tenta ajuda como último recurso.

Quando os fios afrouxam e não sustentam mais em pé, para muitos, a morte aparece como única saída possível.

Douglas estava separado. Um fio cortado. Tinha uma filha de um ano. Não podia ter pensado nela? Não. Não podia.

Quando um casamento acaba ,com filhos ainda pequenos, os filhos ficam com a mãe.

O pai vê uns dias, umas vezes. Sobra mais saudade que presença, no geral. Sobra vazio onde antes era agitação. Outro fio cortado.

O trabalho ajuda a se manter em pé. Mas um trabalho sem salário? Contas vencendo, credores ligando. Vergonha de si mesmo por estar devedor?

Há quem não ligue, você pode dizer. Que empurre com a barriga. Não pessoas depressivas. Pessoas depressivas se cobram muito. Se exigem demais. E, facilmente, se sentem encurraladas. Sem saída. Nesse caso , roubadas de sua dignidade.

A dignidade costuma ser um fio muito importante. A bengala que ajuda nos piores momentos. Esse fio foi o estado que cortou.

Para um homem, criado no velho costume de que tem que sustentar a casa, não ter para dar é a morte.

Por isso, por favor, investiguem. Façam exame de corpo delito. A humilhação de não ter seu salário, a insegurança das dívidas vencendo, assassinaram Douglas, antes dele ser atingido pela bala na cabeça.

O mesmo estado que assassina doentes pela falta de atendimento. Que assassina futuros pela falta de escolas.

Arma emboscadas a cada esquina e assassina policiais e civis diariamente. Rouba-lhes a alma. Humilha. Zomba Até quando?

Há na vida momentos que são só nossos. Só a gente é que passa. Só a gente sabe onde, como e o quanto sofre.

Douglas teve a coragem de expor a sua dor. Foi uma morte denúncia. Ele falou por todos. Ele escancarou para os que fingem não ver. Para os que ,vendo, nada fazem.

Para se manter vivo é preciso fiar. Tecer a trama. Se trançar em sonhos, em fé, em afetos. Se trançar com os outros. Em ajudas, em horas de escuta e compreensão. Sempre. Como aranha, insistente.

Viver é preciso é urgente. Mais urgente do que se imagina.

Douglas, descanse em paz.

 

extra.globo.com

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