Bombeiros franceses socorrem ferido perto das antigas instalações do jornal 'Charlie Hebdo', em Paris, em 25 de setembro — Foto: Alain Jocard / AFP.

Análise: A blasfêmia, o direito e o delito

O ponto central do debate na França é a linha tênue que separa, na longa tradição de liberdade de expressão, o direito à blasfêmia dos delitos de injúria.

A onda de barbárie desencadeada a partir das aulas do professor Samuel Paty tem uma origem certa: as caricaturas que ridicularizam a figura maior da religião muçulmana, o profeta Maomé. Sua republicação nas páginas do jornal “Charlie Hebdo” durante o atual julgamento dos atentados de 2015 provocou imediatamente um primeiro ataque em 25 de setembro, ferindo duas pessoas que conversavam em frente à sede do jornal.

Bombeiros franceses socorrem ferido perto das antigas instalações do jornal 'Charlie Hebdo', em Paris, em 25 de setembro — Foto: Alain Jocard / AFP.

Bombeiros franceses socorrem ferido perto das antigas instalações do jornal ‘Charlie Hebdo’, em Paris, em 25 de setembro — Foto: Alain Jocard / AFP.

Na cronologia macabra dos últimos 15 dias, foi o desenho de Maomé nu com uma estrela no traseiro, exibido em sala de aula, que motivou o assassinato do professor de Yvelines, seguido do padre e de duas fiéis na basílica de Nice, no mesmo dia em que um um guarda do consulado francês na cidade saudita de Djedda era ferido a faca. O mês de outubro terminou com ao menos duas balas no corpo do padre à porta de sua Igreja ortodoxa em Lyon, que luta entre vida e morte no hospital.

A invocação – justa – da racionalidade laica e da liberdade de expressão, somada às medidas – de eficácia duvidosa – aumentando a repressão com o fechamento de organizações na França em luta contra a islamofobia, estão na verdade servindo como mais óleo na fogueira. Em 29 de outubro, data do Natal muçulmano, quando se comemora o nascimento do profeta, as declarações de Emmanuel Macron defendendo as caricaturas provocaram mais uma vez uma reação massiva do vasto e populoso mundo islâmico contra o aviltamento de seus valores sagrados – na Índia, no Oriente Médio, na região do Magreb, na África subsaariana. Dacca, a capital de Bangladesh, chegou a reunir mais de 40 mil pessoas nas ruas.

Ainda sob a forte comoção dos acontecimentos, vozes respeitáveis na França começam a levantar o véu do tabu imposto pelo luto e pelo atordoamento. Reivindicam o direito à crítica, intrínseca à liberdade de expressão, para discutir menos apaixonadamente os elementos dessa crise sem fim que atinge a própria identidade francesa.

O ponto central do debate é a linha tênue que separa, na longa tradição de liberdade de expressão, o direito à blasfêmia dos delitos de injúria, difamação, provocação ao ódio, violência ou discriminação. Anastasia Colosimo, professora de Teologia Política na Sorbonne, lembra que a blasfêmia foi descriminalizada em 1881, com a primeira lei de liberdade de imprensa. Um século depois, ela seria restringida, com a emenda que interditou em 1972 os atos de injuriar, difamar ou provocar ódio. Assim, na França, é possível insultar uma religião, mas é proibido interditar ou insultar os adeptos de uma religião. O problema é que a interpretação muda com o passar do tempo e as suas circunstâncias. E a questão que se coloca hoje, diz Anastasia Colosimo, é definir se insultar uma religião em si, ou as figuras e símbolos de uma religião, é ofender os adeptos desta religião.

Outra voz importante nesse debate é a do professor François Héran, titular da cadeira de Migrações no Colégio da França. Numa carta aos professores sobre como refletir com liberdade sobre a liberdade de expressão, Héran critica energicamente a visão “moralizante” que rotula de “corajoso” aquele que persiste na ofensa e de “covarde” aquele que não a provoca. O professor está convencido de que considerar como “inimigos da França” os que recusam essa visão é “uma forma indigna de excluí-los do debate e da própria nação”.

O filósofo e teórico social Jacques Bidet, da Universidade de Nanterre, acrescenta a essas visões a deriva do termo “islamismo” nas últimas décadas. Durante séculos, o “islamismo” foi entendido como uma religião, como o cristianismo e o judaísmo. Mas, entre os anos 1980 e 1990, o termo foi sendo progressivamente ligado ao Islã fundamentalista, nascido nas guerras do Afeganistão e do Iraque. Desta mistura subliminar brotaram os sentimentos que alimentaram uma patologia que ameaça qualquer religião – o fanatismo. O fanatismo nada mais é do que a instrumentalização da religião, voltada para uma lógica de barbárie.

Blasfêmia e insulto, divisão da sociedade, construção da barbárie: alguns temas sobre os quais vale a pena refletir nesse momento difícil, numa nação que, pela própria história que escreveu, é um exemplo na defesa da liberdade de expressão e dos direitos humanos, ao mesmo tempo que concentra o maior número de cidadãos muçulmanos de toda a Europa – quase nove por cento de sua população. Vale ainda lembrar que em outubro de 2018 a Corte Europeia dos Direitos do Homem validou a condenação por blasfêmia de Elisabeth Sabditsch-Wolff, que qualificou o profeta Maomé de “pedófilo” durante um encontro do Partido de Extrema Direita da Áustria, o FPO. A corte entendeu que o veredicto, da justiça austríaca, não contrariava a Convençao Europeia relativa à liberdade de expressão. Na França de hoje, como seria o veredicto para um pronunciamento como o de Elizabeth Wolff?

G1

Comments are closed.

error: Solicite a matéria por email!